Infiel

postado em: Cotidiano 6

Finalmente terminei de ler Infiel, autobiografia de Ayaan Hirsi Ali. Se eu tivesse que recomendar aos leitores do blog apenas um livro neste ano, sem dúvida seria esse.

Nascida na Somália em 1969, Ayaan sofreu as agruras de governos socialistas, guerras civis e a pressão do islamismo – que ora era seu refúgio, ora seu martírio. Da Somália foi para a Arábia Saudita, depois Etiópia e Quênia. Questionadora, devorava os livros a que tinha acesso e imaginava uma sociedade onde as mulheres escolhiam o rumo das suas vidas, em vez de viverem submissas.

Em 1992, Ayaan ia rumo ao Canadá para viver um casamento arranjado pelo pai. Com o vôo fazendo escala na Alemanha, num ímpeto de coragem e ousadia, ela resolveu escapar e pediu asilo político na Holanda, onde se graduou, conquistou cidadania holandesa e elegeu-se deputada no parlamento, defendendo a liberdade de expressão e os direitos das mulheres no islã. Para uma mulher, negra, muçulmana e que desconhecia o modo de vida europeu, sem dúvida foi um feito incrível.

O livro é sensacional. Não tem a correria de um thriller de ficção, mas prende a atenção como tal. Há momentos que chocam, como a descrição das atrocidades cometidas contra as mulheres e a narrativa de refugiados de guerra, além dos eventos que culminaram no assassinato de seu amigo, Theo van Gogh. Um resumo desses acontecimentos você pode ver aqui.

A visão de um país que não permite questionamento de suas leis e condena liberdade e democracia é perturbadora. A disseminação do ódio mostra como pessoas podem ser manipuladas a enxergar inimigos que não existem. Por exemplo, o ódio aos judeus. Acabou a luz na rua? Culpa dos judeus. Tropeçou numa pedra? Culpa dos judeus. Até inimigos internos, como Saddan Hussein, eram tidos como judeus. Não há de se estranhar, portanto, esse conflito milenar.

Mas nem tudo é sofrimento. O livro descreve uma Somália diferente da de hoje, onde um governo unificado construía um futuro de esperanças. O pai de Ayaan, muçulmano fiel, não era radical e gostava de dialogar. Figura importantíssima no livro, ele estudou em Roma e em Nova Iorque nos anos 60 e retornou deslumbrado com os americanos: “Se eles conseguiram chegar aonde chegaram em apenas duzentos anos, nós, somalis, podemos ser a América da África”. Mas a tomada do poder por um governo comunista minou as esperanças e lançou o país na miséria.

O choque cultural de Ayaan ao viver na Holanda e descobrir que era dona do seu nariz é divertido. O que para nós, ocidentais, é comum, para ela era um escândalo. Entretanto, o excesso de liberdade da Holanda e a falta de limites para exilados e estrangeiros também pode ter sido o princípio da sua ruína, visto como o país está hoje sempre às voltas com atos terroristas. Em nome da liberdade de expressão, não se freou a tempo um ‘governo paralelo’ que prega justamente o fim de toda e qualquer liberdade. Veio-me à mente o Brasil e o MST.

Acredito que Ayaan tenha absorvido rápido demais a nova cultura e quis compensar o tempo perdido. Notam-se as inúmeras referências a escritores, filósofos e seu envolvimento com a política foi a maneira de extravasar o que sentia. Na ânsia de chocar, de chamar atenção para um problema, creio que se excedeu. É uma mulher brilhante, intelectual e determinada. Mas em alguns momentos parece ser ainda uma somali perdida em um mundo estrangeiro.

Já relatei no outro blog que gosto de fazer minhas leituras em um café do meu bairro. Em uma manhã de sábado, enquanto lia uma passagem triste de Infiel, olhei pela janela do café e vi duas meninas – uma loira e a outra negra – com roupas de ginástica e mochilas nas costas, indo para a academia. Sorriam e brincavam despreocupadas na manhã ensolarada. Me peguei sorrindo também. Alheias ao racismo, intolerância e terror que eu estava lendo, elas não faziam idéia de como suas vidas eram boas.

Seguir Emilio Calil:
Empresário, Palestrante e Escritor. ⚡ Fundador do Marketing de Transformação, que emprega técnicas de autoconhecimento e coerência para elevar o espírito de pessoas e empresas.

6 Responses

  1. emerson
    | Responder

    Excelente. Quero ler esse livro também. Inclusive, Ayaan já é candidata para meu livro, aquele de que te falei.

  2. […] a dura realidade da mulheres que vivem sob a linha dura do fundamentalismo religioso. Visitem o blog do Emílio e dêem uma […]

  3. aLEGT
    | Responder

    Parabéns pela escolha do livro. Ainda não li, mas, sem dúvida é uma boa pedida. Tenho andado afastados das livrarias por conta do pseudo sucesso de obras vazias (leia-se PAULO “PICARETA” COELHO e as milhares de versões de O “PSEUDO” SUCESSO). De qualquer maneira, seu texto me deixou curioso para conhecer a obra em questão.

    Mesmo sem ter lido, gostaria de deixar uma impressão pessoal sobre uma possível discussão politica implicita na obra (socialismo x democracia). São completamente contra qualquer tipo de governo. Pra mim, homem que comanda outros homens é podre e corrupto, seja em qual sistema ele esteja escondido. A diferença entre um sistema e outro, na minha opinião, é uma só: no socialismo há censura explicita, na democracia tudo fica nas entre-linhas…. Seja lá qual for a melhor opção, nada melhor do que o homem abandonar os mandamentos criados pelos homens e seguir sua vida!

  4. aLEGT
    | Responder

    Nossa…. digitei tudo errado! Que vergonha…. Desculpe amigos pelo texto acima…. bendito seja o MSN que não deixa a gente nem pensar direito…rs…. Abaixo segue o texto com menos erros….rs

    Parabéns pela escolha do livro. Ainda não li, mas, sem dúvida é uma boa pedida. Tenho andado afastado das livrarias por conta do pseudo sucesso de obras vazias (leia-se PAULO “PICARETA” COELHO e as milhares de versões de O “PSEUDO” SUCESSO). De qualquer maneira, seu texto me deixou curioso para conhecer a obra em questão.

    Mesmo sem ter lido, gostaria de deixar uma impressão pessoal sobre uma possível discussão politica implicita na obra (socialismo x democracia). Sou completamente contra qualquer tipo de governo. Pra mim, homem que comanda outros homens é podre e corrupto, seja lá qual for o sistema. A diferença entre um sistema e outro, na minha opinião, é uma só: no socialismo há censura explicita, na democracia tudo fica nas entre-linhas…. Seja lá qual for a melhor opção, nada melhor do que o homem abandonar os mandamentos criados pelos homens e seguir sua vida!

  5. helena
    | Responder

    Provavelmente, as tais meninas não fazem idéia do quanto a vida delas pode ser melhor do que a tiranizada Ayaan. Ser brasileira nesse contexto é um ganho, mas o que me perguntei após ter lido o seu bom texto é se te passou pela cabeça o quanto a sua vida também pode ser melhor do que a das tais meninas?

  6. Juliete
    | Responder

    Emílio eu gostaria de saber quando realmente vai sair o resultado do processo de isenção do vestibular(2009) da UFRN.

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