Para encerrar os momentos de nostalgia que contaram a história das gatas e a da comida chinesa com pizza, fecharei a “trilogia” falando um pouco sobre o tal do “Fusca of Love“, que me veio à mente ao escrever os textos anteriores. Mas não relatarei a história que originou o famigerado apelido para o carro é deveras constrangedora para o protagonista. Lembrarei aqui apenas uma passagem com o mesmo veículo, tempos depois do ocorrido que lhe rendeu tal fama.
Ano: 1995. Avançávamos pelo mês de julho e o inverno não dava sinais de fraqueza. Eram manhãs frias com pessoas nas ruas vestindo todos os agasalhos que conseguiam. As tardes exibiam um sol pálido, que não aquecia. E as noites eram geladas, com um vento cortante que chegava até à alma.
Como já relatei, tínhamos o hábito de nos reunir em uma vídeo-locadora após o expediente. E daquela vez não foi diferente. Passava das 18h quando despontei na locadora, procurando abrigo do frio. A loja estava cheia de clientes e isso aquecia o ambiente. Nessa noite fui o único da turma a aparecer por lá – tirando o amigo que ali trabalhava e fiquei debruçado no balcão, conversando. Naquela época, o dono da locadora tinha um fusca bege claro, porém, quem mais andava nesse carro era seu funcionário, meu amigo Claudinei, visto que o próprio dono não dirigia. Assim, se ele precisasse de qualquer coisa, o prestativo rapaz não hesitava em oferecer-se para o serviço. E, como recompensa, podia usar o carro nos finais de semana.
Naquela noite, o dono pediu ao Claudinei que fosse buscar o carro. Mas tinha um problema, o fusca encontrava-se na casa do dono. E ele morava cerca de três quarteirões dali, ladeira acima. Seria necessário andar a pé uns dez minutos até o carro. Na mesma hora, meu amigo (muy amigo) disse: “Emílio, vem comigo?”. Ora, eu estava quente e confortável, folheando o catálogo de filmes piratas, e recebera o convite para subir uma ladeira num frio de rachar? De pronto respondi: “Ah, vai lá, vai”! Mas ele insistiu e disse que me deixava em casa depois. Não sei por que, mas acabei concordando e fomos buscar o fusca.
Subíamos a rua curvados, os braços cruzados sobre o peito e não emitíamos qualquer som. Vez ou outra dizíamos: “Putz! Tá frio pra caramba”! Mas a frase ficava sem resposta. Era esforço demais mover o maxilar apenas para comentar o óbvio. Finalmente chegamos. Era uma casa de esquina e ficava no topo da ladeira, sendo que a rua começava a descer depois dela. A casa era dessas recuadas que possuem um pequeno jardim na frente com um portãozinho de grade. O fusca estava lá dentro. Abrimos o portão e meu amigo entrou no carro. Como a passagem era estreita, esperei ele tirar o carro para entrar. Mas isso não aconteceu.
Ao dar a partida, em vez do barulho da ignição, ouvimos o famoso ruído de ‘engasgo’, próprio de veículos que se recusam a ligar. Olhamos um para o outro. Devia ser o frio. Tinha que ser. Outra virada de chave e nada. Então, achando que o problema poderia ser a bateria, ocorreu-nos empurrar o carro ladeira abaixo e fazê-lo pegar no ‘tranco’. Como a rua era de mão única, não podíamos empurrar o fusca na direção da locadora, tínhamos que direcioná-lo para o outro lado.
O Claudinei disse: “Você fica aqui e fecha o portão. Eu desço a rua, dou a volta e subo para te pegar”. Ajudei a empurrar o carro ladeira abaixo e fiquei ali, no meio da rua, observando o fusca descer. Uma coisa me incomodava: No silêncio da noite eu não ouvia o som do motor. Voltei, fechei o portão e retornei à esquina, esperando o fusca aparecer a qualquer momento e me livrar do frio. A espera foi longa. Preocupado, desci a rua para saber o que se passava. Lá embaixo, exatamente na virada da rua, estavam o fusca e o Claudinei. Um imóvel e o outro com feições de derrota no rosto. Ao me avistar, ele exclamou: “Não sei mais o que fazer! Nem no tranco essa droga pega”!
No final da rua havia um posto de gasolina e empurramos o fusca até lá. O lugar era mais iluminado e poderíamos pedir ajuda. Levamos o carro até o posto e explicamos o ocorrido. Os frentistas tentaram dar a partida, sem sucesso. A essa altura, o inconformado Claudinei já bufava de raiva. Naquela noite ele vestia uma blusa moletom com gorro e bolsos frontais, estilo ‘canguru’. Revoltado e com frio, ele enfiou as mãos nesses bolsos e, subitamente, a expressão em seu rosto mudou de raiva para dúvida, passando para assombro e, finalmente, espanto. Ele fechou os olhos, apertou os lábios e, lentamente, tirou do bolso um pequeno objeto escuro. Na hora percebi o que era: O cachimbo de conexão das velas do carro. Ele costumava tirar o cachimbo do fusca para evitar roubo.
Fiquei ali, boquiaberto, observando ele recolocar o cachimbo no carro e dar a partida. O fusca pegou na primeira. Custava-me a acreditar que estava há quase uma hora em pé, no frio, à noite, tentando resolver um problema cuja solução encontrava-se no bolso do meu amigo. Ele simplesmente esquecera-se desse pequeno detalhe. Apesar de conhecido como “Fusca of Love“, esse carro, para mim, evocava outro sentimento e, com certeza, não era amor.
Essa foi uma noite insólita. Não mais do que a que originou o apelido para o fusca, mas foi. Esse pequeno carro, se falasse, contaria as histórias muito melhores do que eu.
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Quero agradecer ao amigo Emílio por não me deixar esquecer essa história. Realmente é algo para se deixar registrado e por favor,relate o episódio sobre o apelido fusca of love... fique a vontade! Sem dúvida será um assunto que renderá excelentes risadas...
Excelente texto!
Grande abraço!
Hilário... Muito bom!!