As gatas

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Relendo o texto anterior sobre a origem dos termos e abreviações de internet, voltou-me à mente um fato ocorrido justamente por causa do antigo “videopapo”. O relato remonta aos anos de 1994 ou 1995 – se não me falha a memória – quando tive meus primeiros contatos com a internet. Todo sábado à noite um amigo nosso, o Marcelo, compartilhava sua casa e o computador com mais três amigos (entre eles, este que vos escreve) a fim de nos entretermos com a descoberta da internet e as maravilhas que a grande rede mundial oferecia. Lógico, o acréscimo de pizzas, esfihas e refrigerantes também eram mais um motivo para a confraternização.

Enfim, foi nessa época que tomamos conhecimento do já citado “videopapo” do UOL, onde era possível entrar em “salas” cheias de pessoas das mais variadas localidades. Não era muito diferente das atuais salas de bate-papo, a não ser pela escassez de recursos gráficos – éramos limitados a textos simples exibidos em uma página com pouca ou nenhuma imagem. Para saber a cidade da pessoa, costumava-se perguntar “de onde vc vp?” que, se traduzirmos, significaria: de onde você “videopapeia”. Depois descobrimos que, digitando as teclas “ALT 155” antes de escrever um texto, podíamos deixar as palavras coloridas ou com efeitos brilhantes. Útil demais, não?

Com o “videopapo”, a internet tornara-se ainda mais interessante. Fizemos muitas amizades e (é claro) algumas inimizades – por que ser gentis e cordiais se podíamos emitir insultos à vontade? Afinal, garantíamo-nos pelo anonimato e, ainda por cima, estávamos em quatro! E essa era nossa diversão. Mas, é claro, xingar os outros não era nossa única forma de entretenimento. Havia as garotas. Travamos frequentes e animadas conversas com moçoilas de todos os lugares do país – coisas da juventude.

E foi uma dessas conversas que originou este texto. Estávamos lá, “videopapeando”, quando entra alguém com o pseudônimo de “As Gatas”. Ora, “as” significava plural e “gatas” nos dava uma breve descrição física das integrantes. Resolvemos puxar conversa. Não sei dizer o que conversamos ou por quanto tempo, mas, em dado momento, alguém deu a ideia: “Pega o telefone delas! Vamos marcar um encontro”. E assim fizemos. A princípio elas relutaram em fornecer o número do telefone, então, para provar que não éramos ameaça, demos o nosso número e esperamos elas ligarem. Ligaram. O Marcelo atendeu, conversou alguns minutos e, por fim, marcou um encontro para o dia seguinte. O local: a praça de alimentação de um shopping.

Domingo à tarde fomos conhecer “as gatas”. Chegamos antes do horário combinado e já nos dirigimos ao local do encontro. A praça de alimentação tinha acesso direto aos cinemas, assim, ficamos perto de um pilar próximo à bilheteria e observamos de longe o movimento. O shopping não estava muito cheio e havia mesas livres. Foi nesse momento, enquanto olhávamos o ir e vir das pessoas que alguém resolveu comentar: “E se elas forem feias demais”? Pronto. Iniciou-se naquele momento um grande debate sobre o que faríamos caso as “gatas” não fossem tão gatas assim. Afinal, o que belas garotas estariam fazendo em casa, na internet, em pleno sábado à noite?

Não demorou muito e um pequeno grupo feminino apareceu no local. Eram quatro ou cinco meninas e davam a clara impressão de estarem procurando alguém. Rodaram por alguns minutos e depois sentaram em uma mesa. Lá no fundo eu já tinha certeza – acho que todos tínhamos – e pensei: “São elas!”. Nesse exato momento, o Marcelo começou a gritar: “Vamos pro cinema! Vamos pro cinema!”. Da minha parte eu já estaria comprando as pipocas, mas ficamos num impasse entre fugir ou encarar o desafio. Ainda teve um que disse: “Ah, vai ver que não são elas, vamos lá perguntar”.

Não lembro bem da sequência exata dos acontecimentos, mas, sei que o Marcelo e eu já estava praticamente na fila dos ingressos, e eu quase me juntando a ele. Foi aí que o traidor do grupo (sempre tem um) dirigiu-se calmamente à mesa das meninas e perguntou: “Oi, vocês são as gatas”? A resposta, em uníssono: “Siiiiimmm”! O estrago estava feito. Ele começou a conversar com elas e apontou para nós, fazendo sinal para sentarmos. Poucos momentos na minha vida foram tão embaraçosos.

A coisa toda não durou mais do que meia hora. Nem saímos da praça de alimentação. Hilário foi o momento em que nos oferecemos para comprar refrigerantes. De nós quatro, três se levantaram para trazer as bebidas, sob o pretexto de que eram muitos copos. Deixamos apenas o traidor na mesa. Ao voltarmos, outra gafe: trouxemos um refrigerante a menos para elas. E nenhum de nós ofereceu o próprio copo em sinal de cavalheirismo. Nem um único gole.

Ao final da aventura, nos despedimos e fomos embora. Nunca mais entramos em contato com elas. Depois do ocorrido, passamos a ir cada vez menos à casa do Marcelo, até que a turma começou a se reunir na minha casa para jogar videogame – afinal, videogames eram mais inofensivos, não tinham (na época) acesso à internet. Não posso dizer que não foi engraçado, mas, no calor do momento, “fugir” era a única palavra que eu tinha em mente.

Ainda hoje tenho pesadelos sobre isso e acordo gritando no meio da noite, suado e com o coração disparado. Pelo menos aprendi a nunca mais confiar em pseudônimos. E talvez por isso eu não veja muita graça em relacionamentos virtuais. Nada contra quem se cadastra em sites do gênero, mas o bom e velho cara a cara ainda é insubstituível. Mesmo hoje, com a possibilidade de se disponibilizar fotos pela web, não esqueçamos que existe uma ferramenta muito melhor do que o bisturi do Pitanguy: o Photoshop.

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Empresário, Palestrante e Escritor. ⚡ Fundador do Marketing de Transformação, que emprega técnicas de autoconhecimento e coerência para elevar o espírito de pessoas e empresas.
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